O feliz casal, abraçado ao lado do portão, acenou agradecendo ao dono do veículo que se afastava. Em seguida, voltou-se para o seu novo mundo, o lugar de sua moradia. À volta, os móveis espalhados ao chão, escassos pertences perfilados até a porta do velho rancho, esperavam para serem conduzidos para dentro. Mas o casal não tinha pressa. Ainda abraçados, macho e fêmea, olharam com a mesma alegria todos os encantos do seu paraíso. O local era pobre, castigado pelos anos. Tinham, entretanto, todo o tempo do mundo para consertarem as janelas, o telhado, a cerca de arame... e a horta? Ia ficar uma maravilha! Podia-se ouvir a canção de uma fonte que fazia suas águas correr pelo quintal. Tinham todo o tempo do mundo para as plantações, a criação de animais e para serem felizes.
O homem, jovem e forte; a mulher, saindo da adolescência, tinha a barriga saliente de uma gravidez já adiantada. A esperança saltava em seus olhos, misturando-se ao verde-escuro das árvores que circundavam o local. Não ousavam dizer para não dar azar, mas nem buscavam mais felicidade; já traziam o suficiente dentro de si.
** Vamos começar? Senão escurece...
** Vamos, mas não faça muita força pra não incomodar a criança.
A tranquilidade daquele recanto foi quebrada, pela primeira vez, na terceira noite. Um súbito e estranho ruído acordou a mulher.
** O que é isso, Josival?
** O quê, Mariana?
** Isso! Parece um choro.
** É um choro, mas não é de criança.
** Me abraça...
** Não precisa preocupar. As portas estão trancadas. Amanhã eu descubro o que é.
Dia seguinte, e Josival se embrenha no mato. Logo volta com a notícia:
** É um débil mental, meu amor. Mas não faz mal a ninguém. Deve estar de passagem. Na hora do almoço, faz mais um pouquinho que eu até levo pra ele.
Os sonos das noites seguintes foram interrompidos, todos, por aquele choro inconfundível, melancólico, pavoroso.
** Eu estou com medo...
** Esse doido já está incomodando. Amanhã eu vou tirá-lo daqui.
** Até o bebê acorda. Olha aqui ele pulando.
Com o novo sol, a criatura foi conduzida por vários metros além da propriedade.
** Pronto. Levei-o até a porteira. Dei o pedaço de pão que você mandou e falei pra não voltar mais aqui. Agora pode ficar sossegada e a criança também.
Felicidade é assim tão efêmera que um simples detalhe é o bastante para fazê-la ebulir, subir aos céus, desaparecer.
** Josival!
** O que foi? O que aconteceu?
** O doido voltou. Agora está mais perto.
** Deve estar lá no galinheiro.
** E o choro ficou mais feio ainda.
A paciência tem limites. O céu escuro traz o medo e este desperta a coragem. O que de dia normalmente não se faz, à noite, até mais.
** Eu vou lá mostrar pra ele uma coisa!
** Mas, pra que a espingarda?
** Só vou dar um susto nele.
A mulher tapou os ouvidos. O bebê sentiu no peito um ardume e mudou de posição no ventre da preocupada mãe. O estampido foi seco...
** Pronto. Ele não vai chorar mais.
** Você o matou?
** Não, foi só um susto, eu te falei.
Naquela manhã, o homem acordou “com as galinhas”.
** Já vai? Mas ainda está meio escuro.
** Eu quero acabar aquele roçado ainda hoje. Continua dormindo. A criança precisa.
Pela fresta da parede, foi possível ver o marido pegar o enxadão e colocar nas costas. Mato se corta é com foice; buraco se faz é mesmo com enxadão. As noites seguintes não tiveram mais choros; tiveram, sim, dores e enjoos.
** Ainda não é hoje, Mariana. Tenta dormir.
** Coisa estranha! Foi só o doido sumir e eu comecei a passar mal.
** Para de falar isso. Não tem nada a ver. Aguenta mais uns dias.
Josival faz de tudo: planta, colhe, tira leite, dá de comer às criações, corta lenha, faz de tudo...
** O que está fazendo? Parece uma cruz.
** Não é cruz, não. É pra colocar no pescoço do cavalo e arar o chão.
Por que as dores doem mais à noite, ninguém sabe. Suporta apenas.
** Ai, está doendo demais! E a criança não para de mexer. Deve ser por isso que dói. E eu não consigo me esquecer daquele doido, ainda por cima.
** Lá vem você com essa história! Esquece isso, pelo amor de Deus! Na semana que vem, vou trazer sua madrinha pra ficar com a gente.
Parteira é mais que médico; é feito mãe que acalma, que sara as feridas do corpo e da alma. Faz mais antes que durante. Depois...
** Veja que belo rapaz! Está perfeito! O seu choro, no entanto, é muito esquisito. Nunca vi igual em minha vida inteira.
** Esse choro... meu Deus! É o choro daquele doido, Josival. Ah, não...