Aquele muro apenas chapiscado – em outras palavras parcialmente coberto por uma camada fina de cimento – era a morada de uma ou mais famílias de lagartos, aqueles pequenos cor de nada. Ali encontravam o lugar ideal para viver. Havia sujeira rente ao chão onde pousavam os mosquitos e outros insetos, base de suas refeições. A ausência de cor era parecida e facilitava o mimetismo. Além disso, a rústica construção apresentava deformidade nos tijolos e espaço entre eles, possibilitando abrigos necessários de proteção contra os predadores. E o principal: como separava quintais, proporcionava aos seus habitantes dois mundos distintos, um do lado esquerdo e outro do lado direito. A paisagem era sempre diferente e até mesmo o clima se modificava. Uma maravilha!
Nesse espaço abençoado, um dos repteis, ainda jovem, havia perdido a cauda. Foi assim: uma ave de rapina deslizou, num voo rasante, em sua direção. Ele notou a tempo a manobra e rapidamente se lançou no primeiro buraco ao seu alcance. Havia se salvado, mas a sua parte traseira voara pendurada naquele terrível bico curvo. Tudo bem, imaginou, em pouco tempo a natureza se encarrega de lhe dar outra cauda novinha em folha. Engano seu, não estava tudo bem. Desse dia em diante ele começou a observar olhares maliciosos advindos dos colegas de muro, notou sorrisos disfarçados, ouviu comentários indesejados. Alguns amigos se afastaram e as “meninas” de sua espécie não o convidaram mais para aquele agradável passeio matinal na área coberta de musgo. Ele estava diferente, e diferente os outros ficaram. Sentiu-se deprimido, sem vontade de viver. Nem se alimentava direito. Ficava o tempo todo numa deformação do muro escondendo seu corpo deformado.
Ele já tinha ouvido falar em discriminação, mas não sabia que essa palavra doía tanto. Ao perder a cauda, passou a ser o ser mais insignificante, mais repugnante daquele mundo. Não era mais lembrado para compor a equipe de caça aos mosquitos, não fazia mais parte do grupo de defesa do lugar nos embates com os invasores da velha casa de tábuas. Não era ninguém, não tinha ninguém, não era amado por ninguém. Depois de alguns dias, a nova cauda começou a surgir, fato que não o animou. Ao ver aquele “toco de rabo” no espelho da poça d’água, o coitado se aninhou mais profundamente em seu esconderijo. Era demais tudo aquilo. A solidão, o descaso, o desamor. Ser diferente era a mais difícil de todas as tarefas da vida. Queria estar junto dos amigos, participar da sociedade, contribuir com seu trabalho, mas não podia. Queria conversar, contar anedotas, sorrir, mas não podia. Não tinha esse direito, pois não era mais igual aos outros. Não suportou a pressão. Certo dia amanheceu na parte mais alta do muro, onde sempre sobrevoava a ave de rapina. Os olhos parados no infinito refletiam nos raios de sol toda sua amargura. E resoluto se foi, nas garras afiadas da morte, olhando seu ingrato mundo do alto dos céus.
O pequeno lagarto foi mais uma vítima da discriminação, que existe em todas as espécies, inclusive a humana.