Há sangue em suas mãos ?
Tente mover o mundo - o primeiro passo será mover a si mesmo. Platão
Quase uma década de vida policial, já tomei conhecimento de incontáveis casos, que acabam por demonstrar os piores defeitos do homem (a traição, a inveja, o ódio, a covardia), e me fazem, em algumas vezes, duvidar se é possível que quem pratique ações tão monstruosas, teria mesmo sido criado à imagem e à semelhança de Deus .
Com o passar do tempo criei uma rotina profissional de analisar o crime de forma imparcial, impessoal, fria mesmo. Já me acostumei em saber que às vezes é possível descobrir o assassino, e às vezes, por mais que me esforce, não consigo, pela falta de provas ou de estrutura da polícia para apurá-las.
Mas se a investigação tem sucesso, e consigo provar que determinada pessoa matou, e onde, e porquê, e como, e com que fim, etc., o assassino é responsabilizado e por vezes, preso. Caso encerrado. “E que sirva de exemplos para outros que pensem em fazer o mesmo”. E a população aliviada bate palmas : “mais um assassino preso”.
Só que um caso especial povoa meus pensamentos e me faz reavaliar o conceito de que só o assassino é responsável pela morte de alguém.
No dia vinte e dois de fevereiro deste ano na nossa Bananeiras, um jovem chamado Fabiano Resende, mais conhecido por Zoinho, foi brutalmente espancado por uma corja de covardes. Em uma visita a casinha simples onde morava sozinho percebi que ele teria, bravamente, após o espancamento, voltado para casa e deitado em sua cama, mas ao tentar abrir a geladeira caiu, tendo sido então encontrado por familiares.
Levado ao HUGO em estado grave, o jovem não resistiu, e morreu.
Analisando os vestígios do crime, o laudo cadavérico da vítima e o exame pericial em suas roupas, sujas de lama e esterco de vaca, cheguei à conclusão que Fabiano foi abordado nas ruas, e levado para uma “quebrada” onde recebeu uma severa surra sendo que a maioria dos golpes acertaram sua cabeça.
O médico-legista relata que Fabiano apanhou muito, foi arrastado, esganado, seu crânio foi fraturado em diversos lugares, os assassinos atingiram-no com as mãos, os pés e um objeto contundente, possivelmente, um pedaço de pau ou um bastão de ferro.
Fabiano era órfão, perdeu pai e mãe. Doente mental e sozinho no mundo, sustentava-se com uns trocados que sua tia lhe dava, já que se recebesse todo o dinheiro da pensão de sua mãe, o consumiria rapidamente com drogas, vício que lhe perseguia há anos.
Doente, sozinho, pobre, feio, franzino, não tinha amigos, e nem pensar uma namorada.
Era muito conhecido por todos, pois vivia nas ruas pedindo dinheiro para comprar remédios, na verdade, a intenção era socorrer seu vício.
Estes vagabundos, cretinos, covardes que mataram Fabiano, pela forma que praticaram o crime, ficaram com seu sangue nas mãos. Pode ser que sejam descobertos ou não. Não sei responder a esta pergunta. Até porque, até agora, ninguém que tenha presenciado algo, teve a capacidade de prestar depoimento na Delegacia.
Mas outra pergunta, já posso responder com certeza. Fabiano não morreu só pelas mãos daqueles que racharam sua cabeça com socos, pontapés e pauladas.
Quantas vezes eu o encontrei pela rua, e ele, sabidamente, me reconhecia, já dizendo: “Delegado, o senhor não me arruma um real pra ajudar a comprar meu remédio?”. Na última vez que isso aconteceu, ele tomou um pito. Falei que tinha que “criar vergonha” e que parasse de pedir dinheiro, pois era crime, e “lhe daria uma cadeia”.
Fabiano coincidentemente nasceu no mesmo dia, mês e ano que eu. Era a nossa única e para mim inédita coisa em comum. Pois eu, mesmo de família, como a dele pobre, pela ação de meus pais, que tiravam da boca para me sustentar, tive outra sorte.
Sou saudável, bem educado, cheio de amigos, ando em carro do ano, tenho minha família bem estruturada, e uma bela e carinhosa namorada. Tinha tudo para fazer algo por aquele geminiano como eu, mas não fiz. Esperei que os órgãos do Estado – assistência social ou o que equivalesse – fizessem por mim, ou que não fizessem também, pois não era minha a responsabilidade.
Eu tenho seu sangue em minhas mãos.
Mas e você? Já o tinha visto na rua? E fez o quê? Não adianta ficar com a consciência tranquila porque deu esmolas a ele, pois isto, não resolveu o problema; de fato, fez foi piorar a situação, pois alimentava seu vício.
Você também foi omisso como eu fui. Mesmo se não o conhecesse também continua sendo responsável, pois existem milhares de Zoinhos pelas ruas. É responsável quem vende seu voto, ou quem não o valoriza cobrando do eleito providências para acolhimento de drogativos ou simplesmente de pessoas órfãs ou sozinhas neste mundo. É responsável quem não participa dos problemas dos outros, quem não olha a pessoa ao lado como um ser humano, que precisa de carinho e atenção, mas o considera apenas como sendo o outro. Pois assim, nos portando, não somos diferentes dos assassinos, que apenas “encaminharam” o que construímos.
Sinceramente, acho que estávamos todos nós, juntos naquela “rodinha” de assassinos e com nossa omissão e desamor também demos um soco ou um chute em Zoinho, atingindo-o mortalmente.
Mas cabe a cada um, seu exercício de reflexão. Só não se esquive de responder à pergunta:
Há sangue em suas mãos?
¹Genesis 1:26
Gustavo Carlos Ferreira. É delegado de polícia titular de Goiatuba e professor de direito penal na FAFICH.
gustavocferreira@hotmail.com