Quando éramos crianças, nossos pais falavam de um anjo que nos acompanhava durante todo o dia, nos protegia dos acidentes, dos constantes perigos e, à noite, se postava ao lado da cama zelando do nosso sono e até mesmo dos nossos sonhos. Nada nos acontecia de ruim, bastava que a gente fosse obediente e não fizesse estripulias. Era o nosso anjo da guarda, tão real para nós que corríamos confiantes pelos arredores com a certeza de que o atento defensor guiaria nossos passos na melhor direção. Com o passar do tempo, para muitos, esse ser divino foi perdendo a importância. O estudo, a modernidade, o ceticismo distanciam a religiosidade, enfraquecem a fé e esse anjo foi sendo esquecido. Alguns chegam até a questionar sua existência. Felizmente isso não aconteceu comigo. Meu guardião me acompanhou até os dias de hoje, durante todos esses anos. Inúmeras vezes já me deu provas de seu zelo, de sua bondade. Vou contar uma dessas passagens...
Aconteceu em uma pescaria. Eu e meus três companheiros chegamos à cabana na beira do rio, animados com o tempo firme e a notícia da aproximação de um cardume. Muito trabalho, no entanto, precedia o momento de colocar a canoa na água. Enquanto aprontávamos o acampamento, apareceu um morador da região para nos fazer uma visita. A cordialidade se devia mais à possibilidade de tomar uma dose de aguardente que os pescadores nunca se esquecem de incluir na lista de compras. Sua presença, no entanto, foi providencial, pois na chegada se deparou com uma enorme jararacuçu aproximando-se do local. Sem titubear, o homem armou-se de um porrete, matou e arrastou o bicho para nos mostrar. O visitante confirmou que a picada dessa cobra é mortal e acrescentou, nos alertando, que raramente vive sozinha, há sempre por perto uma companheira.
Aquelas palavras ficaram em minha mente por toda a manhã. Após o almoço, enquanto meus amigos descansavam, esquecido do fato me dirigi até à beira do rio para admirar a paisagem, visitar as borboletas e ouvir o canto dos pássaros. O caminho era estreito, ladeado por um capim rasteiro abaixo dos joelhos. Ao se aproximar do barranco, o trieiro fazia uma pequena volta passando debaixo de uma árvore. Foi ali. Eu caminhei mais alguns passos e, de repente, arrepiou-me todo o lado direito do corpo. Somente o lado direito, de uma forma que eu nunca sentira antes. Forte, insistente, sobrenatural. Virei-me instintivamente naquela direção e lá estava ela, a cobra, a companheira, enrolada a uma raiz, com a cabeça erguida voltada para mim. Eu passaria a menos de um metro dela, mas algo me avisou e me deteve. Um protetor, um anjo.
Dei meia volta e cheguei à cabana com a certeza de que nunca estou sozinho; com a alegria de saber que o tempo não levou a minha fé. Continuo obediente aos conselhos dos meus pais e não faço estripulias. Conservo assim do meu lado, hoje e para sempre, o meu anjo da guarda.