Vez em quando minha cara-metade faz isso: vasculha o guarda-roupa e começa a jogar ao chão aquelas peças mais usadas, dependuradas à espera de um passeio, mas nunca lembradas, perdidas num canto, no mofo, na solidão. Depois, com as duas mãos ela ajunta, aperta ao peito como num agradecido abraço pelo serviço prestado por elas e, com um sorriso à frente, estende os braços em doação. Uma boa ação, que apoio. Posteriormente as roupas são distribuídas, em campanhas, nos bairros pobres da cidade. Ali elas serão lembradas, admiradas, valorizadas. Antes inúteis e puídas; depois importantes, novas outra vez.
Só que desta vez a mulher se empolgou. Ao chegar do trabalho dei-me por falta da minha calça bege, de bolsos largos na altura dos joelhos, de barra desfeita pelo tempo. Era velha, é verdade, mas não esquecida, nem cheirava a mofo. Tinha, sim, de minha parte, uma grande predileção e me acompanhava sempre na porta da casa após o serviço, na feira aos domingos e no passeio com as crianças na praça da esquina. Procurei mais uma vez, cabide por cabide, no cesto até. Não encontrei. Ela me disse mesmo adeus. Vai virar saudade, pensei, e falei baixinho que melhor seria se uma nova tivesse ido embora em seu lugar.
Alguns dias se passaram e aquela falta esteve presente em minha vida. Não foi nada fácil me convencer a aceitar a ideia de não vê-la mais. Porém, uma surpresa: hoje ao parar no sinal vermelho, certa mão se estendeu à espera de uma moeda. Olhei e não pude deixar de ver naquele corpo franzino, naquele andar cambaleante, ela, a minha calça! Um pouco suja, mas a mesma cor, os mesmos bolsos, a mesma barra. Foi tão a surpresa que me vi preso àquela vida por alguns poucos segundos. A vontade de rever a calça me fez transportar para dentro dela. Aquele era eu, ou quase. Então, em minha nova identidade, estendi a mão, ouvi o tilintar da moeda recebida e senti a maciez do tecido amigo tocar em mim, como se também sentisse saudade. Foi incrível!
Tornei-me por instante um pedinte, mas um pedinte feliz por reencontrar a velha amiga.
De repente, uma buzina trouxe-me à realidade, voltei a ser eu mesmo e segui. A vontade de ficar nem me deixava pisar direito o acelerador. Pelo retrovisor olhei-a com olhos do coração e fiz minha despedida. Nem precisava, mas prometi não me esquecer dos bons momentos vividos juntos, não me esquecer da cor, dos bolsos, da barra. E, quem sabe, um dia a gente se esbarra de novo por aí.