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NA BATIDA DAS EMAS

A fazenda era grande. Tinha de tudo: peões, carros de boi, currais, moendas, mangueiros, monjolos, cavalos e gado, muito gado. E outras inúmeras coisas do sertão que é desnecessário dizer. Para dirigir tudo isso de forma eficiente era necessário uma mão forte. Meu patrão tinha. Talvez até forte demais. Tudo o que dizia era lei. A lei do sertão, a lei do nosso mundo. Ele era um homem alto, de ombros largos, pernas finas mas firmes. Seu chapéu de abas largas fazia desproporcional a cintura para cima em comparação com a parte de baixo. Ninguém ousava desrespeitar uma ordem, já que sua voz tinha um timbre raivoso que dava medo escutar.

Eu era um simples peão. Seu braço direito era Gerôncio, moço garboso, afeiçoado, barba bem feita, com laço de couro cru na cintura. Tudo bem. Eu sabia meu lugar. Campeava o gado, levava para o pasto, trazia para o curral, tirava o leite. Eu e meus companheiros. Tanto gado assim só muitos braços fortes para ajuntar, tratar, curar e tirar o lucro para o dono.

Patrão tinha um gosto especial: sua criação de emas. Na verdade não era dele. Era da natureza. Grandes e belas aves que corriam pelos pastos e que, impulsionadas pela curiosidade de seus pescoços longos, chegavam até a cerca da grande sede. O patrão olhava, apontava, dava risadas e dizia ser o seu rebanho preferido.

Eu tinha um cachorro. A cor, não sei explicar. Meio marrom, rosado, de papo branco. Muito amigo. Onde eu estava, lá estava ele me olhando, esperando uma ordem minha para ser cumprida. Se eu desse dois passos, ele seguia. Se eu parasse, ele parava. Minha vontade era a dele. Por isso se transformara em minha maior riqueza. Bem mais valioso que meu arreio, minhas botas, meu facão e minha espingarda cartucheira. Se eu desse uma carreira nele por alguma travessura, logo voltava abanando o rabo, me chamando de amigo. Seu único problema era não gostar das emas ou, quem sabe, gostar delas. Vivia correndo no trieiro das grandes aves como se quisesse pegá-las. Eu sabia que era só brinquedo; não bulia em nenhuma delas.

Patrão não gostava. Não aprovava as investidas do meu cão em suas aves. “Ele vai acabar levando as emas embora”, dizia. Eu danava, raiava, tirava o cão da trilha, mas ele sempre voltava. Era demais para ele ver aquele estranho rebanho de pernas altas, pescoço longo e lombo arredondado. Às vezes eu até sorria, através de sua enorme felicidade. Não esperava que uma inesperada ordem mudasse toda a minha vida. Depois de uma noitada na cidadezinha, o patrão chegou furioso. Talvez uma prenda sua o tenha trocado por outro figurão. Só podia ser isso. E ele disse: “Mate esse cachorro seu. As emas são minhas, ele tem que saber disso”. 

A ordem me pegou de jeito. E eu já andei, de cabeça baixa, em direção ao meu barraco. A espingarda, tirei da parede. Conferi o carrego e passei pela cerca como se passasse do céu para o inferno. Avistei meu cão correndo festivo em volta das emas. A ordem era para matar e não para prender. Minha total dependência de vaqueiro não me deixou fugir com a responsabilidade. Na cabeça ecoava a ordem que eu tinha de executar. Chamei meu cão que deixou seu brinquedo e correu alegre ao meu encontro.

Ele veio no cano da arma. Seu rabo balançou ao me olhar. Ficou parado em minha frente esperando um possível mandado. Levantei a espingarda a um palmo de sua cabeça. A obediência do animal era maior que o medo e eu puxei o gatinho. Ele caiu aos meus pés, banhado de sangue, lambendo minhas botas. 

Minha vida acabou. Ela corria no seu sangue, perseguindo as emas. Se hoje me perguntam por que não tenho alegria, digo que ela se foi na batida das emas, que também foram embora da fazenda e nunca mais voltaram.

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