Quem tem um pouco mais de janeiros lembra perfeitamente. A traição existia e era um acontecimento feliz e esperado na vida de todos. Era frequente alguém compartilhar aquilo que tinha de melhor com as pessoas. Não, não estou falando de chifre, mas de solidariedade. Traição consistia na união de amigos ou simplesmente conhecidos para executar uma tarefa, quase sempre na zona rural, cujo proprietário demonstrava dificuldade em realizar sozinho.
Era uma ajuda desinteressada, feita com a melhor das intenções, arquitetada às escondidas. Quando eram necessárias mais foices para derrubar o roçado, se o plantio precisava de uma capina, quando a colheita estava passando da hora, se o esforço se revelava inútil e a esperança ameaçava abandonar os olhares, eis que surgiam todos os vizinhos, de perto ou de longe, trazendo na força dos braços a ajuda pedida por inúmeras vezes nas orações lançadas aos céus.
Era assim: antes dos primeiros raios de sol, antes dos moradores despertarem para mais um dia de labuta, todos chegavam de repente pisando no caminho o frio da madrugada, anunciados pelos latidos dos cachorros e pelos foguetes que explodiam no quintal. Os donos da casa acordavam de sobressalto e pulavam de suas camas para receber os inesperados visitantes. Devido à enorme surpresa e natural incredulidade, o fato se chamava traição. Realmente era uma atitude de “engano” ao morador que às vezes até chorava, mas de felicidade.
Os homens traziam as ferramentas de trabalho: enxadas, enxadões, foices e machados. As mulheres traziam o café, os biscoitos, o leite e a farinha para a alimentação matinal, além dos demais ingredientes para o feitio do almoço e da janta. A casa ganhava uma nova vida, parecia que suas paredes se estendiam, se deslocavam com o movimento das pessoas pra lá e pra cá, cada grupo com sua tarefa, e com a correria das crianças aproveitando ao máximo aquele ambiente festivo. Não podia ser medida a alegria do encontro, da confraternização e principalmente da atitude de amor ao próximo.
A força do mutirão sempre vencia e quando os cansados benfeitores retornavam do serviço no fim da tarde, eram recebidos pelo restante dos foguetes, pelas quitandas saídas do forno e pelo carinho daqueles que esperavam. Uma improvisada barraca estendida no quintal e uma animada sanfona convidavam para o início do pagode. Apesar do cansaço daquele dia cheio, ninguém deixava de acompanhar o ritmo alucinante do xote e do arrasta-pé.
Era assim a traição. O companheirismo misturava-se às sementes da lavoura. A amizade erguia-se em volta dos mourões do curral. A boa vontade andava pelas vizinhanças nas costas dos trabalhadores junto às cabaças d’água. Pelo menos por aqui essa traição não existe mais; a outra, no entanto, tem aumentado dia a dia.